O que está acontecendo na fronteira Ucrânia-Rússia?

Um textão sem vergonha para tentar entender algumas questões dessa disputa tão importante

A Rússia nesta segunda-feira, 21, anunciou que vai reconhecer duas repúblicas separatistas no leste da Ucrânia como estados independentes e enviar tropas para a região para "manter a paz". Mas o que isso significa? E como entender esse conflito?

Os processos históricos que nos levaram a esse momento e os laços entre Ucrânia e Rússia podem ser traçados há séculos.  Para simplificar, porém, a gente pode começar no fim da Guerra Fria (desculpa, historiadores!). É essencial entender que, até o fim da União Soviética, Ucrânia e Rússia eram parte de um só poder. Vários países fizeram parte da União Soviética, mas alguns tinham (e mantêm) mais laços com os russos até hoje.

A Ucrânia é um desses países.

Uma parte considerável da sua população tem ou família ou cidadania russa, especialmente porque nos últimos anos o Kremlin acelerou o processo de dar cidadania às pessoas que falam a língua russa no país vizinho. Russo e ucraniano, aliás, são muito parecidos. Não só pelas origens eslavas, mas pela teia que liga os dois povos e países, trocando palavras e mantendo a comunicação mais fluida. Mas, vale reiterar: a Ucrânia e a Rússia são países diferentes, com tradições e histórias diferentes.

Dando um fast forward vergonhoso na história, antes de 2014 a Ucrânia era liderada por um presidente pró-Rússia. Ou seja, um presidente que celebrava esses laços e histórico e estava mais próximo politicamente do autoritarismo de Moscou do que do liberalismo do Oeste.

Em 2013, Viktor Yanukovych se recusou a assinar acordos de associação política e livre comércio com a União Europeia, o que gerou uma onda de protestos. Apesar dessa conexão com o país vizinho, a maior parte dos ucranianos, especialmente aqueles na capital e mais distantes territorialmente da Rússia, eram a favor dessa aproximação com o restante da Europa.

"Revolução da Dignidade", em 2014 na Ucrânia

Yanukovych acabou deposto em votação parlamentar e fugiu do país - dizendo que foi ilegalmente retirado do poder. Discurso apoiado pelas autoridades russas.

A luta no Leste

No leste da Ucrânia, uma região na fronteira com a Rússia, a história foi outra. Lá, Yanukovych havia ganhado grande parte dos votos que o elegeram e a área tem maior conexão com os russos. Os protestos no leste foram em grande parte contra a revolução que acontecia em Kiev. Conforme o poder se consolidava nas mãos dos oposicionistas na capital, o movimento no leste se transformou em um movimento separatista.

Os combatentes pró-Rússia receberam apoio militar de Moscou e estabeleceram os "proto-estados" Donetsk e Luhansk.

Nesse processo, a Rússia aproveitou sua presença militar e invadiu e anexou a península da Criméia, uma região com boa parte da população de origem russa e que passou por um referendo - fortemente criticado - no qual a população votou a favor de se tornar parte da Rússia.

A região Donbas (preto), com as repúblicas separatistas, e a Crimea (laranja) que foi anexada pela Rússia em 2014

Para conter uma escalada militar, os dois lados, Rússia e Ucrânia, junto com mediadores da Alemanha e França (esse é o tal "formato Normandia") concordaram em assinar acordos de paz e cessar fogo. O chamado "protocolo Minsk" nunca foi totalmente implementado e, especialmente onde há os separatistas pró-Rússia no Leste, a luta nunca parou. Desde 2014, a região é cheia de tensões e combates esporádicos. A Crimeia, por sua vez, continua sendo um território ocupado.

A aposta do Putin

Aqui, a situação fica mais complicada. Por que Putin assinou um acordo se agora ele está indo contra o combinado ao reconhecer a região separatista? E por que essa obsessão com a Ucrânia?

A verdade é que estamos vendo a história sendo escrita, então muitas respostas podem ser só totalmente conhecidas daqui a décadas - ou nunca. O que muitos analistas defendem, porém, é que Putin fez uma aposta.

Em 2014, ele viu um governo recém-eleito entrando no poder na Ucrânia. Primeiro com Petro Poroshenko como presidente e, depois, com Volodymyr Zelenskyy eleito. Zelenskyy era um artista, um comediante, que foi eleito com base em sua atuação no período revolucionário e em promessas de combate à corrupção. O Kremlin estava contando com sua inexperiência.

Por outro lado, os separatistas russos no leste do país continuavam em plena ação, a Rússia continuou sendo um gigante militar e Putin decidiu esperar.

Quando você não precisa se preocupar com coisas como processos democráticos, eleições e, bem, melhorar a vida do seu povo, é fácil pensar em longo prazo. Putin continuou apoiando, às sombras, os separatistas, continuou dando cidadania para falantes de russo na região fronteiriça e continuou ações que poderiam diminuir a importância e força econômica da Ucrânia.

O famoso duto de gás NordStream 2 é um exemplo disso: por essa nova via, a Rússia poderia exportar gás para a Alemanha e o restante da Europa, sem passar pela Ucrânia, privando os ucranianos de bilhões de dólares em royalties.

E ele esperou.

A aposta, muitos acreditam, era de que o governo democrático ucraniano não resistiria por muito tempo. Que questões econômicas e políticas eventualmente derrubariam uma liderança liberal e Putin conseguiria ver um aliado novamente em Kiev. Não foi o que aconteceu. Pelo contrário: a Ucrânia cada vez mais se aproximava do Ocidente, deixando de ser um "escudo" para a Rússia, uma "zona neutra" entre o gigante eslavo e seus "inimigos" ocidentais.

Em azul escuro, os países membros da OTAN; em azul claro, os que estão no caminho para entrar na organização; em verde, os que estão em "diálogo intensificado" e em laranja, os "parceiros para paz".

A OTAN - o que é e por que Putin vê como uma ameaça?

Ao mesmo tempo, a aliança militar entre esses inimigos, conhecida como Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aumentava sua presença no leste europeu. Uma boa parte dos países que antes eram do bloco soviético e agora são vizinhos da Rússia hoje fazem parte dessa organização militar famosa por uma de suas "regras": um ataque a um membro gera uma resposta de todos os membros, inclusive potências como Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha.

Embora a Ucrânia esteja longe de se tornar um membro, Putin - corretamente - avaliou que essa era uma possibilidade eventual. O presidente russo disse que via um risco enorme de, um dia, uma Ucrânia com apoio da OTAN tentasse invadir a Crimeia para retomar a região e isso gerasse uma guerra sem precedentes nos tempos modernos.

Ou podemos avaliar que uma Ucrânia membro da OTAN estaria melhor protegida de ataques russos. Ambos são verdade. Então, ele resolveu agir. Não só para evitar a entrada da Ucrânia na organização, mas possivelmente para forçar a saída de alguns vizinhos dela, ou pelo menos a retirada de tropas e armamentos da OTAN desses países vizinhos.

A movimentação

Por isso que esse conflito é tão complicado. São diversas variáveis: muitos motivos, contextos, históricos e interesses que levaram os dois países a esse ponto. Do mesmo modo que nesse texto a gente seguiu uma ou duas linhas de raciocínio, é possível traçar mais argumentos e hipóteses para essa movimentação militar da Rússia.

O fato é que, desde o fim de 2021, Moscou enviou milhares de tropas ofensivas e de apoio às fronteiras, com a desculpa de estar fazendo um "exercício militar" típico. Ainda com esse discurso, ele consegue conversar com o ocidente e fazer suas demandas: retorno da OTAN ao status antes da Guerra Fria, sem as ex-repúblicas soviéticas como membro; ou retirada de presença militar da OTAN da área, ou promessas de que a Ucrânia jamais vai se unir ao bloco.

São promessas e ações que Putin já sabe que o Ocidente não poderá ceder? São pedidos apenas para distrair o mundo enquanto ele busca uma desculpa para invadir a Ucrânia? Ele está apenas testando os limites da diplomacia mundial com algo muito maior em mente para anos? Ele está nos distraindo e distraindo sua população por algum outro motivo? Difícil saber.

Por enquanto, porém, parece que o objetivo é conquistar o maior território possível na Ucrânia, um país que Putin vê como russo por história, por "direito". Nesta segunda, 21, ele reconheceu as duas repúblicas separatistas (da época do confronto em 2014) como independentes - uma medida que todos enxergam como o primeiro passo para incorporá-las ao território russo.

As potências europeias e os Estados Unidos responderam afirmando que essa quebra do protocolo de Minsk, dos acordos de paz (que falharam) de 2014, é o suficiente para a imposição de sanções ao gigante.

A Rússia, que enviou tropas para a região separatista para apoiar o "movimento independente", tem laços econômicos e energéticos demais com o resto do mundo. Cortar o país do ocidente pode ter repercussões tão fortes para a Rússia quanto para aqueles que impõem sanções. Mas permitir que o Kremlin siga com uma política expansionista em pleno 2022, também.